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"Angústia, entre gozo e desejo" - revista Psique (Figer, Arthur)

"O conceito de angústia vem sendo revisto e modificado ao longo do tempo, principalmente por Freud e Lacan. Hoje, apresenta-se nos consultórios médicos e psicoterápicos, com assustadora frequência, sob o rótulo de “pânico”."

Atualmente, multiplicam-se nos consultórios médicos e psicoterápicos sujeitos acossados por sintomas que remetem à angústia. Sintomas decorrentes de uma exigência de satisfação irrestrita, que reflete a tônica da sociedade hedonista contemporânea. Goze! Não amanhã, não daqui a pouco, não parcialmente, mas sim aqui, agora e integralmente, até o limite (ou além).

A maioria destes pacientes já chega com seu autodiagnóstico na ponta da língua: “tenho síndrome do pânico, doutor”. O que seriam esses ataques de pânico, tão frequentes na atualidade, senão uma reação corporal, uma descarga no corpo, sem intermediação, de um excesso com o qual o sujeito não é capaz de lidar? O que temos visto é um tipo de sofrimento causado não mais pela repressão, pela falta, mas sim pelo excesso, pela “falta de falta”, como enunciava Lacan. O que importa é o prazer imediato e ilimitado, sem contenção e sem barreira. O que se busca é gozar a qualquer preço. “Por que resistir às tentações?”, pergunta um cartaz afixado em um restaurante a quilo no centro da cidade; “Pecado é tentar resistir...” afirma uma faixa na entrada de uma loja de doces. Ou seja, “Goze!”.

Vivemos numa sociedade onde a perda e a falta são inaceitáveis, insuportáveis e, por esta razão, busca-se a completude o tempo todo. Adquirem-se novos objetos, na esperança de que estes finalmente deem conta da falta, do vazio angustiante, que possam proporcionar uma satisfação plena, completa, definitiva e ilusória. “Pânico” nada mais seria, portanto, que um nome moderno, um rótulo atual conferido a algo que Freud e Lacan já estudavam profundamente há mais de meio século: angústia.

Esta busca desesperada por uma “poção mágica” que impeça o reconhecimento da falta, da incompletude e do sofrimento é uma das características mais marcantes da atualidade, alimentada diariamente pela nossa própria cultura. Este “não querer saber da falta” representa certa dificuldade em se estabelecer limites, em lidar com a lei, suscita questões como “Qual é o limite? Quando basta? A morte é o limite? O ilimitado é angustiante.

Na obra de Freud, encontramos, basicamente, duas teorias sobre a angústia (angst, em alemão). Em um primeiro momento, até 1926, Freud argumentava que a angústia neurótica seria simplesmente resultado da transformação da libido (energia sexual) que não teria sido adequadamente descarregada. Para ilustrar, mencionava que os sintomas corporais típicos da angústia, como dispnéia, tensão muscular, suor, tremores e palpitações seriam apenas “fragmentos soltos do ato de copulação.” (Freud, 1905, p. 77).

A ideia de transformação da excitação sexual, ou do excesso libidinal, em angústia, deu origem à primeira teoria freudiana, cuja tese é que a angústia decorreria do recalque. De acordo com o primeiro pensamento de Freud, este afeto primordial é problematizado em seu aspecto econômico, decorrente de um “transbordamento” da libido ou ainda resultante de um desvio da libido que não encontrou escoamento adequado. A libido “solta”, desligada pelo recalque de suas representações, irromperia sob a forma de angústia. Portanto, seria o recalque que presidiria a irrupção da angústia.

Posteriormente, em 1926, quando publica “Inibições, Sintomas e Angústia”, Freud abandona esta teoria e passa a defender a ideia da angústia como uma forma de reação a uma situação traumática. A angústia seria, portanto,uma resposta psíquica e corporal a uma experiência de desamparo, frente a uma acumulação (excesso) de excitação que não pode ser descarregada por outras vias, a não ser pela via corporal. É exatamente esta impossibilidade de representação, a incapacidade de simbolização ou a não-intermediação pela palavra, que ocasionariam os sintomas corporais observados na angústia.

Situações traumáticas podem ser causadas por situações de perigo e, principalmente, por situações de perda. Freud diz que a angústia é reação-sinal à perda de um objeto: perda do meio uterino (nascimento), perda da mãe, perda do amor do objeto e, acima de tudo, a perda do pênis, ou castração. Em sua segunda teoria da angústia, Freud passa a associar a angústia à angústia de castração, o que poria em movimento o recalque, admitindo, assim, que é a angústia que causaria o recalque e não o contrário, como pensava.

Freud estabelece,ainda,uma distinção entre o que chamou de “angústia automática”, quando a angústia surge como resultado direto de uma situação traumática, e “angústia como um sinal”, quando a angústia é reproduzida pelo eu como um alerta frente a uma provável situação de perigo.

Angústia e fobia

Antes de prosseguirmos com o olhar do psicanalista francês Jacques Lacan sobre a angústia, há que se marcar uma distinção importante entre os conceitos psicanalíticos de angústia e fobia. Lacan argumenta que as fobias seriam uma espécie de “proteção” contra a angústia, sendo preferível ao sujeito, se houvesse opção, sofrer de fobia que de angústia.

O que se trata na fobia é de medo, não de angústia. Medo em relação a um objeto específico e, portanto, passível de ser dito, de ser falado, de ser trabalhado simbolicamente. A angústia, por outro lado, é terrível para o sujeito na medida em que não é causada, nem direcionada a nenhum objeto específico, como na fobia, mas gira em torno de uma ausência, de um vazio, de uma impossibilidade de dizer.

Lacan, em seu retorno à Freud, procura ir “além da angústia de castração”. Não por acaso que o psicanalista francês escolhe exatamente este título para dar nome ao capítulo IV do seu Seminário 10: a angústia. No início de seu ensino, Lacan começa por relacionar a angústia, primeiramente, com a ameaça de fragmentação, com a qual o sujeito é confrontado no estádio do espelho. Ele também relaciona a angústia com o medo da criança de ser engolida pela mãe devoradora. A fábula do louva-a-deus gigante, que Lacan utiliza no início do Seminário 10: a angústia (2005, p. 14), nos fornece uma boa dimensão do que se trata a angústia diante do Outro enigmático e, ao mesmo tempo, assustador de quem eu não tenho a menor ideia do que quer e do que quer de mim.

Che vuoi? Que queres? Que quer ele de mim? Esta fábula diz respeito a um personagem mascarado que se vê diante de um inseto de aparência assustadora, um louva-a-deus gigante, e que por não saber que máscara está usando, não sabe se este louva-a-deus iria encontrar nele o objeto do seu desejo ou não, se iria devorá-lo ou não. A angústia estaria ancorada, portanto, no desejo do Outro, uma vez que não podemos saber que objeto somos em relação ao desejo do Outro. Só imaginariamente podemos supor nossa posição no desejo parental e aí construímos nossa fantasia. Lacan vai elaborar neste seminário sua afirmação da existência de uma relação essencial entre a angústia e o desejo do Outro.

Ao referir-se ao desejo do Outro, ele traz a dimensão do Outro, como lugar do significante para a definição de angústia. Lacan indica assim uma relação essencial da angústia com o desejo do Outro: o que quer ele de mim? Aquilo que o Outro quer, mesmo que não saiba o que seja, é necessariamente minha angústia. Nessa relação ao Outro, o sujeito se inscreve como um quociente, isto é, como um resultado dessa marca significante. Desta operação de divisão há um resto, um resíduo. Esse resto, esse irracional, esse enigma, é o objeto a, única garantia da alteridade do Outro. A problemática da angústia se vincula ao desejo do Outro justamente enquanto estrutura portadora desse enigma. Che vuoi?

Podemos perceber, desta maneira, uma diferença crucial em relação às propostas lacaniana e freudiana: enquanto Freud argumenta que uma das causas da angústia seria a separação da mãe, Lacan propõe que é exatamente a falta desta separação que ocasionaria angústia. A angústia, segundo Lacan, surgiria não em função da ausência do seio, mas, pelo contrário, a partir de sua presença massiva e sufocante. É a possibilidade de sua ausência, ou seja, ausência da mãe e do seio o que, de fato, nos preveniria da angústia. A seguinte passagem do mestre francês deixa claro seu ponto de vista sobre o assunto: “Vocês não sabem que não é a nostalgia do seio materno que gera a angústia, mas a iminência dele? O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever que voltaremos ao colo. (...) e ela fica perturbada ao máximo quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo todo nas costas dela (...)” (LACAN, 1962-63/2005, p. 64)

A angústia que, para Lacan, é um afeto, notadamente, o único afeto que não engana, seria causada, portanto, não pela falta (de um objeto), mas sim pela falta de falta. Ou seja, é quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar da falta que a angústia se instalaria.Quando algo surge no lugar da castração imaginária, é isso que provocaria angústia, uma vez que a falta, falta. Consequentemente, a castração, longe de ser a principal causa da angústia, como acreditava Freud, seria de fato aquilo que salvaria o sujeito da angústia.

Vejamos como Néstor Braunstein conduz a questão: “É sabido que para Lacan, diferentemente de Freud, a castração não é uma ameaça, mas, pelo contrário, é salvadora. A ameaça verdadeira, a terrível, é que não haja castração. A clínica mostra, às vezes, que os defeitos na função do pai, que é a de incluir o sujeito na ordem simbólica, é a causa de um apelo desesperado, patético, à intervenção castradora que separe a criança do gozo e do desejo da mãe.” (BRAUNSTEIN, 2007, p. 46).

Para Lacan, a angústia não é sem objeto (n´est pas sans objet), o que não significa dizer que ela tem um objeto. O objeto de que se trata na angústia é um tipo diferente de objeto, um tipo especial, um objeto que não pode ser simbolizado da mesma maneira que os demais objetos. Esse objeto absolutamente singular, quase imperceptível, que, de fato, é apenas um lugar, e que tem um estatuto especial de causa do desejo, foi chamado por Lacan deobjeto a.

A angústia entre o gozo e o desejo é uma formulação de Lacan que aparece no Seminário 10 (Lacan, 1962), e que situa ainda a existência de um objeto da angústia que é o mesmo objeto do desejo, o objeto a. A angústia surgiria, portanto, quando algo aparece no lugar deste objeto. No lugar da falta, representada pelo lugar deste objeto. O objeto em questão não se trata, como vimos, de um objeto qualquer do mundo sensível, mas de um objeto inapreensível, não representável, do registro do real; concebido como causa do desejo. Ele pode ser identificado sob a forma de fragmentos parciais do corpo, redutíveis a quatro: o cíbalo, o mamilo, a voz e o olhar e Lacan ainda inclui o falo, destacando-o como "o mais ilustre dos objetos a". São objetos anteriores à constituição do status do objeto comum, comunicável, socializado. Miller (2011, p. 195), situa o objeto a, o objeto que se trata na angústia, como um “amboceptor entre desejo e gozo”, e embasa sua afirmação em duas proposições trazidas por Lacan, ao longo de sua obra, que o definem tanto como mais-gozar como causa do desejo.

Lacan, de fato, situa a angústia como um termo intermediário entre gozo e desejo, deixando isso claro não só ao nomear um dos capítulos de seu seminário sobre a angústia (sem. 10) de “A angústia entre o gozo e o desejo”, como também ao afirmar, no mesmo seminário, que “a angústia é o meio-termo entre o desejo e o gozo” (2005, p. 197).

Ao final do Seminário 8, Lacan afirma que, para a angústia se constituir, é preciso que haja uma implicação do desejo. Em suas palavras, “o sinal de angústia tem uma ligação absolutamente necessária com o objeto do desejo. Sua função não se esgota na advertência de ter que fugir. Ao mesmo tempo em que realiza esta função, o sinal mantém a relação com o objeto de desejo” (1960, p. 352). A angústia, portanto, seria uma forma, uma possibilidade de sustentação do desejo, quando o objeto falta.

Paradoxalmente, o desejo também é visto por Lacan como um antídoto para a angústia, talvez pelo fato de ser mais fácil para o sujeito suportar seu desejo do que a própria angústia. Segundo Lacan: “(...) Quando atingimos este ponto, a angústia é o último modo, modo radical, sob o qual o sujeito continua a sustentar, mesmo que de uma maneira insustentável, a relação com o desejo”. (LACAN,1992, p. 353)

Outra via que, segundo Lacan, também funcionaria como antídoto para a angústia, além do desejo, seria a via do amor. A via do amor é vista por Lacan como oposta à via da angústia. Enquanto a via da angústia conduziria o sujeito ao objeto real, ao objeto de satisfação da pulsão, satisfação esta que é gozo - que sempre deixa um resto - a via do amor é apresentada como a via de acesso ao objeto simbólico, mais precisamente, ao falo, enquanto símbolo do desejo da mãe, ao desejo como desejo do Outro.

Na via do amor, segundo Miller (2007, p. 70), o objeto real seria elevado à dignidade do objeto simbólico, passando-se da “satisfação estúpida da necessidade ao indefinido do desejo metonímico”. Desta maneira, Miller acredita ter esclarecido e ressituado o famoso aforismo lacaniano: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo” (LACAN, 2005, p. 197). É o amor visto como uma espécie de véu que recobriria a angústia e aquilo que ela produz, que seria, como vimos, o objeto a.

Em relação ao gozo, uma das articulações possíveis com a angústia pode ser ilustrada a partir do que Lacan diz a respeito da estrutura do funcionamento masoquista. É bastante difundida a ideia de que aquilo que o masoquista visa seria o gozo do Outro. Partindo desta afirmação, Lacan (2005, p. 195) vai além e diz que o conceito esconderia o fato de que aquilo que o masoquista visa seria, na realidade, a angústia do Outro e não o gozo.

Ou seja, é na medida em que ele(a) quer meu gozo, quer usufruir de mim, exatamente neste momento suscita minha angústia. Por quê? Em sua resposta, Lacan (2005, p. 199), aproximando-se de Freud e sua angústia de castração, diz que quando se trata de gozo trata-se de corpo, então, é o meu ser que ele(a) quer. Uma vez que a teoria nos ensina que só há desejo se houver falta, ele(a) só poderá atingi-lo ao me castrar.

Na tentativa de aplacar sua angústia o sujeito pode lançar mão de diversos objetos dos mais variados, desde álcool e outras drogas, até comida, trabalho e sexo. O problema ocorre justamente quando a relação que se estabelece com tais objetos é marcada pelo excesso, que é justamente uma das principais marcas da atualidade. Este excesso, descarregado nos objetos mencionados, pode implicar no surgimento de transtornos e doenças advindas desta relação desmedida e, quase sempre, inconsequente. Anorexia, bulimia, depressão, drogadição e alcoolismo são alguns transtornos que podem ter relação com a angústia, mesmo que indireta, na medida em que podem advir da tentativa desesperada do sujeito de aplacar a angústia. O suicídio pode ser visto, talvez, como a forma mais desesperada, definitiva e radical do sujeito lidar com a angústia.

A psicanálise, batizada ainda em seus primórdios por Anna O. - famosa paciente do Dr. Breuer (colega de Freud) - de “talking cure” (“cura pela palavra”), é uma poderosa ferramenta para o tratamento da angústia, principalmente através da fala e da linguagem. Para a psicanálise, a palavra funciona como uma rede de proteção, uma espécie de anteparo contra a queda livre da angústia. Nos casos mais graves e recorrentes, a medicação é indicada desde que administrada concomitantemente com as sessões de psicoterapia.

Arthur Figer


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