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"Os vários tons do gozo e do prazer" - revista Psique (Figer, Arthur)

"Freud reconhece que há algo para “além do prazer”, que seria exatamente aquilo que nomeou de pulsão de morte, tendo a compulsão à repetição como uma de suas principais expressões para a construção do conceito de gozo por Lacan."

Temos observado na atualidade um tipo de exigência de satisfação irrestrita, que reflete bem a tônica da nossa chamada ‘sociedade do consumo’ contemporânea, ou ‘sociedade do excesso’. O ‘supérfluo’, o ‘descartável’, o ‘excesso’ e o ‘ilimitado’ são marcas características da nossa cultura. Ipod, Ipad e Iphones 1, 2, 3 e 4 ilustram bem o que queremos dizer. O equivalente deste fenômeno cultural tão atual, pensado a partir da teoria e da clínica psicanalíticas, nos remete ao conceito de ‘gozo’, teorizado pelo psicanalista francês Jacques Lacan a partir, pasmem, do final da década de 50.

‘Goze!’ Sim, segundo Lacan, é isso o que ouvimos, tanto externamente (voz da cultura) quanto internamente (voz do supereu). Não amanhã, não daqui a pouco, não parcialmente, mas sim aqui, agora e integralmente, até o limite (ou além). O que importa é o prazer imediato e ilimitado, sem contenção e sem barreira. O que se busca é gozar a qualquer preço. ‘Por que resistir às tentações?’, pergunta um cartaz afixado em um restaurante a quilo no centro da cidade; ‘Pecado é tentar resistir...’ afirma uma faixa na entrada de uma loja de doces. Ou seja, ‘Goze!’.

É como se hoje em dia o gozo estivesse levando vantagem sobre o prazer. O triunfo do gozo sobre o prazer: podemos inferir que está aí uma das possíveis razões por trás do estrondoso sucesso do romance erótico “Cinquenta tons de cinza”, também conhecido como “o pornô das mamães”. Com mais de 10 milhões de livros vendidos nas seis primeiras semanas do lançamento, a narrativa descreve, em ricos detalhes, as aventuras eróticas de uma jovem estudante de 21 anos, com um magnata sedutor mais velho. Como se não bastasse para cativar os leitores, dois ingredientes picantes especiais são adicionados neste relacionamento: ela é virgem e ele adepto de práticas sadomasoquistas. Tendo êxito em mesclar, tão bem, a inocência da moça virgem com a perversão do rapaz sadomasoquista, a autora consegue exercer um verdadeiro fascínio em seus leitores, principalmente, leitoras. Sem nos estender muito nesta questão, que não é foco deste artigo, uma das explicações possíveis para a predominância das mulheres dentre os leitores deste romance, em nossa opinião, diz respeito mais a certas características do feminino que as levam a preferir algo mais sutil e discreto quando o assunto é pornografia, do que qualquer outra coisa.

O empuxo ao gozo na atualidade é forte e cada um se vira como pode. Parecendo captar bem este fenômeno cultural, a autora do best-seller aborda, com linguagem simples e acessível, um relacionamento recheado de práticas sadomasoquistas, conduzindo seus leitores, de forma sutil, quase imperceptível, ao fascinante campo do gozo, do proibido e da transgressão. As práticas sadomasoquistas, para a psicanálise, pertencem ao campo das perversões e do gozo. Isso, sem dúvida, exerce forte atração, principalmente naquelas mulheres acostumadas com a rotina, com o prazer limitado, com o ‘socialmente aceito’ e o ‘politicamente correto’. Mais de vinte orgasmos em apenas três semanas é o que experimenta a jovem protagonista do livro. Esta é a contabilidade do gozo em ‘Cinquenta tons de cinza’. Quem não se interessaria?

Em seu uso cotidiano, o termo gozo reveste-se, principalmente, de uma dimensão jurídica e outra sexual. No vocabulário jurídico remete à noção de usufruto, ou seja, ao direito de gozar de um bem, gozar de férias etc. Esta conotação jurídica do termo gozo opõe claramente gozo e propriedade. Oposição esta que o Marquês de Sade reforça quando afirma “tenho o direito a gozar do teu corpo”, porém “somente durante o tempo que isso me der prazer”, ou seja, trata-se somente do gozo e não da propriedade do corpo. Em sua conotação sexual, gozo e gozar, tornam-se sinônimos de prazer, mais especificamente, da expressão máxima do prazer sexual. Não por acaso, o psicanalista francês Jacques Lacan escolheu o termo “gozo” (jouissance, em francês), palavra que possui conotação sexual, tanto em português quanto em francês, para nomear o conceito psicanalítico que inventara.

Para ilustrar a importância do caráter sexual do gozo lacaniano, o termo jouissance foi utilizado sem tradução na maioria das edições inglesas da obra de Lacan. Isto se deve ao fato de não haver, na língua inglesa, um significante capaz de expressar tal aspecto sexual do conceito psicanalítico de gozo. A palavra inglesa que mais se aproximaria seria “enjoyment”. Como contribuição psicanalítica à língua inglesa, o termo jouissance passou a figurar no tradicional dicionário Oxford.

O princípio de prazer é um dos dois princípios do funcionamento mental apresentados por Freud em seus escritos metapsicológicos (o outro é o princípio de realidade), sendo caracterizado, resumidamente, pela evitação da dor, do desprazer, e a busca pelo prazer, visando manter a excitação do aparelho psíquico no menor nível funcional possível. Prazer, para Freud, está relacionado à diminuição da quantidade de excitação no psiquismo, enquanto que o desprazer adviria do aumento desta quantidade.

Arte de Transgredir

Segundo Lacan, o conceito de gozo remete à ideia de um excesso, de uma transgressão (da lei), de um “ir além dos limites” ou “além do prazer”, como preferiu Freud ao dar título ao seu texto de 1920, “Além do Princípio de Prazer”. Este é considerado um divisor de águas na teoria psicanalítica que, até então, considerava o “princípio de prazer” como princípio regulador do aparelho psíquico, o qual conduziria o indivíduo à busca pelo prazer e à evitação da dor. A partir da publicação deste trabalho, Freud reconhece que há algo para “além do prazer”, que seria exatamente aquilo que nomeou de pulsão de morte, tendo a compulsão à repetição como uma de suas principais expressões.

Pode-se dizer que a pulsão de morte e a compulsão à repetição representem as principais bases teóricas referenciais na obra de Freud que serviram de matéria-prima para a construção do conceito de gozo por Lacan. O gozo, portanto, é aquilo que está para além do princípio de prazer, que é da ordem do excesso, da transgressão, e que, segundo Lacan, é causa de sofrimento.

Fazendo coro à importância do tema em questão, tanto na teoria como na clínica, a psicanalista Ana Maria Rudge, em seu artigo “Pulsão de morte como efeito de supereu” (2006, p. 79), diz que a questão da constituição desta força que empurra o homem para a dor e para o sofrimento constitui o tema central na obra freudiana. “Pela irresistível atração pelo sofrimento que as caracteriza, essas manifestações clínicas foram o estopim para a maior reformulação da teoria freudiana, aquela que introduziu a segunda tópica e, no seio da nova teoria pulsional, a pulsão de morte, noção tão ambígua, controvertida e com frequência recusada, explicitamente ou não, por tantos psicanalistas.”

Para nos auxiliar na compreensão deste conceito-chave da obra lacaniana, o gozo, vejamos como este se relaciona com o princípio de prazer de Freud.

Fronteiras do prazer

Pode-se dizer que o princípio de prazer funcionaria como uma espécie de limite ao gozo. De acordo com o princípio de prazer, o sujeito deveria “gozar apenas o possível”, para que não adviesse o desprazer. Sendo o conflito psíquico a base da teoria freudiana, e considerando-se a impossibilidade de compatibilidade harmoniosa entre pulsão e cultura, o sujeito insistentemente almeja transgredir as proibições impostas ao seu gozo para ir “além do princípio de prazer”. Entretanto, o resultado desta transgressão ao princípio de prazer não é mais prazer, senão dor, pois o que é prazer por um lado, por outro é desprazer. Além deste limite, o prazer é acompanhado de dor, e este “prazer dolorido” é o que Lacan nomeou de gozo. Serge Cottet (1989, p. 21) coloca a questão da seguinte forma: “(...) há uma zona do prazer que é perigosa, essa zona que tende a ir para o gozo e que o princípio do prazer bloqueia”.

Percebemos assim, que o princípio de prazer pode ser encarado como uma espécie de “guardião” de um estado de homeostase e constância o qual o gozo insistentemente ameaça romper. Esta insistência é descrita por Freud através do fenômeno que nomeou de compulsão à repetição e que pode ser designado como uma espécie de retorno de um excesso (gozo), que insiste em retornar, visando transgredir os limites impostos pelo princípio de prazer.

Uma vez que o princípio de prazer está relacionado à proibição, à lei e à regulação, podemos posicioná-lo no registro do simbólico, enquanto que o gozo encontra-se do lado do real. A partir do momento em que a lei é instaurada, instituída, toda a transgressão implicará um gozo – porque goza-se na transgressão – e isso acarreta uma dívida, em outras palavras, gozar tem seu preço. E este preço, frequentemente, é pago com a própria vida. Vejamos o que diz Cottet (1989, p. 29): “(...) aí, a partir desse momento, o sujeito pode preferir o gozo à vida, e é por isso que temos um complexo do gozo compatível com a aceitação da morte, isto é, de um imperativo de gozo mais forte do que a vida.”

Trechos extraídos de algumas notícias veiculadas sobre a morte de uma estudante de 20 anos em um cruzeiro universitário, em 2008, servem para ilustrar e trazer a teoria para o dia-a-dia: “Amostras de sangue do corpo da estudante de 20 anos, que morreu a bordo de um cruzeiro universitário, foram levadas para serem analisadas pelo Instituto Médico-Legal (IML) (...) afirmaram que houve consumo de drogas durante a viagem. (...) O delegado da Polícia Federal em Santos, no entanto, não descarta a possibilidade de que a passageira tenha morrido por ingestão conjunta de álcool e drogas A estudante morreu em consequência de asfixia por aspiração de líquido - vômito - segundo o laudo do IML.”

A entrada do sujeito na ordem simbólica (linguagem) é condicionada a uma certa renúncia inicial de gozo (castração), quando o sujeito desiste de ser o falo imaginário da mãe. Com efeito, o princípio de prazer é a proibição do incesto, o que regula a distância entre o sujeito e a Coisa (Das Ding).

Ao se abrir mão do desejo, mais precisamente, do desejo incestuoso, ingressamos definitivamente no campo do gozo, uma vez que há uma traição do desejo – ou seja, uma sublimação. Sobre isso, Lacan diz o seguinte (1991, p. 386): "Sublimem tudo o que quiserem, é preciso pagar com alguma coisa. Essa alguma coisa se chama gozo." Além disso, abrir mão do desejo incestuoso significa que a lei se instaurou para o sujeito e, a partir daí, há o que se transgredir (a própria lei). Toda proibição faz surgir o desejo de transgressão, e o gozo é fundamentalmente transgressivo.

Arthur Figer

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